quarta-feira, 26 de março de 2008

Gentileza gera gentileza

Gentileza gera gentileza
Marcelo Rubens Paiva
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Decadência de valores. Deselegância. Mundo perdido, do avesso, olho por olho, seja o que Deus quiser, cada um por si. Três eventos na semana do carnaval me alertaram que o País vive uma crise moral na base do cidadão comum (o homem cordial).1) As vagas de estacionamento para deficientes do Shopping Frei Caneca estavam ocupadas. Elas são demarcadas (e mais largas), pois é preciso espaço para encaixar uma cadeira de rodas entre dois carros. Não por outra, elas existem. Perguntei aos seguranças se foram deficientes mesmo que saíram daqueles carros, que não traziam o símbolo internacional de acesso. ''''Dali saiu uma senhora que disse que era cancerígena (sic.) e que esqueceu as muletas em casa'''', respondeu. Não é preciso exagerar. Sair mancando surte um efeito mais autêntico.2) Subi para o terceiro andar, para assistir ao filme Onde Os Fracos Não Têm Vez, dos irmãos Coen, que debate a decadência dos valores morais. Manobrei a minha cadeira de rodas motorizada no único espaço para cadeirantes - a primeira fileira.O fim do filme corre. Surpreendentemente, morre um personagem essencial. ''''Para mim, acabou o filme'''', disse em voz alta o espectador atrás de mim, que passou a conversar com a namorada. Não acabara. Informações importantes para entender a trama apareciam. Fiz um ''''shhhh''''. Não um ''''shhhh'''' autoritário, impositivo. Foi um ''''shhhh'''' gente boa, colega de sessão de cinema, cúmplice por também não ter viajado no carnaval. O sujeito não parou. A conversa aumentou de tom. Então, eu disse na boa, didaticamente, nada arrogante: ''''Não acabou o filme ainda.'''' Ouvi o que jamais imaginei ouvir no cinema em que vou em média duas vezes por semana: ''''Vai tomar no ...''''Respirei fundo. Lembrei-me de que, no mesmo cinema, meses antes, testemunhei uma briga entre dois espectadores, que saíram na porrada provavelmente pelo mesmo motivo: conversa durante a sessão ou celular atendido. Interessante, pois a trama daquele filme prendia. A platéia se levantou, foi para as laterais, abriu espaço para os brigões e não desgrudou os olhos da tela. Deixou os caras e as suas respectivas controlarem a situação. Isso, sim, é que é filme bom!Porém, o final de Onde Os Fracos Não Têm Vez é fraco. Surgem novos personagens não se sabe de onde, as cenas se confundem. Só depois, em casa, entendi quem, afinal, ficou com o dinheiro. Descoberta colocada em xeque num papo de bar no dia seguinte.Imaginei sacar o braço da minha Quickie P200 e jogar na cara do sujeito. É um gesto que já treinei diante do espelho, como Robert De Niro: ''''Está falando comigo?'''' O braço pesa. Lembra uma Mini Uzi ou uma Cobray 9 mm, a submetralhadora que o ex-estudante de medicina Mateus da Costa Meira disparou em 1999 numa sala de cinema do MorumbiShopping e matou três pessoas.Eu poderia jogar o braço na cabeça dele, ou ameaçá-lo no escuro, como se eu estivesse mesmo armado. Eu poderia pegar o braço, virar a cadeira e dramaticamente anunciar, apontando a suposta 9 mm: ''''Mãos na cabeça, perdeu! O que você disse?! Repete! Pede pra sair!''''Eu poderia sair e chamar os seguranças. Ou fazer um escândalo, gritando mais alto, como um maluco, técnica que o meu amigo Otávio Muller usa para se dispersar em saídas tumultuadas.O sujeito bufava nas minhas costas. Ele queria uma resposta. Estava pronto para a réplica. Meu silêncio o torturava. Era isso. Sou um covarde. Numa cadeira de rodas, não encarei o grande guerreiro da Bela Vista.Vi o fim do filme sem me mexer. Acenderam as luzes. Ele passou por mim. Vestia um boné MC. Deu uma olhadela para trás. Naquele instante, eu poderia ligar minha cadeira torque com duas baterias de 24 volts, que sobe degraus de até 6'''' e atinge a velocidade máxima de 13 km/h, e atropelá-lo. Até quebrar a sua perna, como já quebrei a minha, numa curva de que errei a tangência.Como briga um cadeirante? Acredito que nosso ponto forte é enfiar o pé da cadeira na canela da vítima e, com os dois braços ao mesmo tempo, derrubá-la no sentido oposto, num gesto preciso. Que, confesso, nunca treinei diante do espelho. E torcer para a cavalaria chegar.Mas não fiz nada. Sim, Onde Os Fracos Não Têm Vez, prefiro a minha paz. Ele sorriu, cínico. Disse com os olhos: ''''Covarde, você é um covarde, e eu venci a grande batalha.'''' Me dei conta de que é preciso ser corajoso para não ceder a tentações e ignorar a loucura alheia. E me perguntei o que leva um sujeito num feriado a comprar briga com um lesionado medular C5-C6?Perguntei a alguns amigos não cadeirantes o que teriam feito. Todos disseram o mesmo, que teriam respondido: ''''Vai você.'''' Imaginei a seqüência do conflito, com o fim do filme rolando:''''Vai você.''''''''Não, vai você.''''''''Você quem vai.''''''''Vai você.''''''''Você primeiro.''''''''Você.''''''''Não, você!''''Você teria respondido?3) No dia seguinte, encostei o carro numa vaga na Oscar Freire. Saio do carro montado na minha Quickie P200 pela direita, onde há uma plataforma móvel. Se paro na faixa da esquerda, costumo acioná-la quando não tem carros passando, pois ''''aterrisso'''' no meio da faixa. Mas se algum carro aparece, costuma aguardar educadamente a operação.Não nesse dia. Um elegante Ford Fusion não esperou. Apesar do farol da esquina estar fechado. Passou a centímetros da minha cadeira. Dei um tapa na lataria do carro e disse algo como ''''não sabe esperar, mal-educado''''. Ele freou, me olhou furioso e disse: ''''Tem gente que merece estar onde está.'''' Foi a primeira vez em 27 anos de cadeirante que ouvi tal comentário. Ele caprichou e foi rápido. Eu não conseguiria atropelar a sua canela. Mas faria um bom estrago se sacasse o braço da cadeira e quebrasse seu vidro traseiro.Não joguei o braço da minha cadeira. Segui o meu caminho. A cordialidade brasileira propõe relações diretas. Não controlam o que dizem, e não importam as conseqüência dos seus atos. O jeito é lamentar. Até porque alguém pode filmar tudo e colocar no YouTube. Indico até o título: ''''Cadeirante maluco perde controle!''''
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Um comentário:

Fada Safada disse...

Oi, Júlio.
Falta aos brasileiros mais cordialidade e gentileza. Infelizmente eles confundem com viadagem, acham que grosseria é sinal de virilidade.
Morei em SP ha 18 anos atrás, já era um inferno, imagino agora. Loucura.

beijos e obrigada pela visita ao blog
Fada